
Política, crítica social e sátira são os trunfos do terror de “Corra!” [análise textual com Iramuteq]
Dando continuidade a parte I desse post (Como os filmes de terror tem se reinventado e ressurgido como gênero), é possível identificar padrões e descobrir por quais motivos/questões filmes como Corra!, A Corrente do Mal, Babadook e Boa Noite, Mamãe estão sendo tão elogiados?
Essa segunda parte faz uma análise de críticas sobre “Corra!” – optei por separar um post para cada filme para que a leitura não fique cansativa e chata (rsrs).
Bem, naturalmente, basta ler as críticas para em linhas gerais entender quais são os fatores determinantes do sucesso, segundo os jornalistas. Mas como fazer isso de forma mais estruturada? Usando técnicas de text mining e text analysis separei cerca de 10 críticas “randômicas” de veículos reconhecidos encontradas nas respectivas páginas de cada um desses 4 filmes no Metacritic.
Antes de analisar esses filmes, no entanto, gostaria de mencionar um artigo publicado recentemente pelo The Guardian cunhando o termo post-horror (pós-horror ou pós-terror pra nós).
Por meio de análise textual, vamos observar ao longo desse post como é equivocado chamar esse sub-gênero de pós-terror — embora já existam ótimos materiais refutando essa nomenclatura e explicando inclusive o erro etimológico do termo.
Não custa avisar que esse post pode conter spoilers de todos os filmes mencionados.
Política, crítica social e sátira são os trunfos do terror de “Corra!”

Por meio do software Iramuteq é possível fazer uma análise de um conjunto de artigos (chamado de corpus) e identificar padrões e agrupamentos de palavras. A análise de similitude de 10 críticas sobre Corra! trouxe algumas reflexões interessantes que nos permitem entender quais são os principais pontos pelos quais os críticos o viram como um “bom filme”:
No centro de cada uma dos grupos coloridos estão as palavras que aparecem com mais frequência: black, white, Peele e Chris. Naturalmente essas palavras aparecem mais frequentemente porque são muito utilizadas para descrever o argumento do filme, bem como falar do personagem principal e do idealizador do filme.
O grupo laranja, cuja palavra central é black apresenta conjuntos de palavras usadas para descrever o mote do filme, muitas vezes descrevendo a cena inicial do filme (guy, street e lakeith, o nome do ator que protagoniza essa cena) – em seguida, um cluster muito próximo se forma em torno da palavra white. Dessa vez, o cluster de palavras nos apresenta algumas das problemáticas do filme: especialmente se olharmos de forma mais próxima as palavras Hollywood, point, idea e audiences.
Aqui é possível começar a desenhar os argumentos de incomodo já que, segundo as críticas de maneira geral, a audiência branca não está acostumada a ser diretamente provocada a refletir sobre seu privilégio no cinema, especialmente em gêneros geralmente reconhecidos como rasos – como filmes de terror. Da mesma forma, não é comum que filmes de terror abordem questões raciais diretamente como crítica social – no entanto, nos filmes (especialmente os slashers dos anos 80) é muito comum encontrar clichês racistas e misóginos (se repararmos que negros e mulheres geralmente não sobrevivem e/ou são os primeiros a serem mortos nas sagas de serial killers).
Também ligado ao cluster laranja está o roxo, cujo nome do personagem principal (Chris) está em evidência. Não analisarei esse agrupamento de palavras porque é basicamente um descritivo do que acontece no filme. Entretanto, um pequeno cluster verde no canto superior direito faz uma analogia interessante ao filme Stepford Wives. Extraí um trecho da crítica do The Telegraph que exemplifica de forma clara um dos principais aspectos pelos quais esse sub-gênero não deve ser chamado de pós-terror, na tentativa de provar que esse seriam uma “evolução”, nem mesmo desvinculado ao gênero do terror por aqueles que descreditam os filmes que não são graficamente chocantes.
Esse trecho revisita alguns dos pontos pelos quais os filmes clássicos foram considerados excelentes – hora homenageando, hora bebendo na fonte dos mesmos:
Os elementos de terror do filme se debruçam na espera, assim como em sátiras de gerações anteriores – As Esposas de Stepford (1975), O Bebê de Rosemary (1968). Um aspecto da situação de Chris envolve ser forçadamente desprendido da realidade através da hipnose, afundando em um mundo paralelo que a personagem de (Catherine) Keener chama de “o lugar do esquecimento”. Visualmente, o filme pega emprestada a armadilha de Jonathan Glazer em Sob a Pele. Mas esse empréstimo funciona por conta do forte apelo político – se torna uma flutuante e agitada metáfora de se estar impotentemente ofuscado pela hegemonia branca.
(Traduzido de: http://www.telegraph.co.uk/films/0/get-review-breathlessly-suspenseful-expose-horror-liberal-racism/)
O último e mais complexo cluster de texto é o que também agrupa o maior número de reflexões sobre o filme. No centro das palavras e em destaque está o sobrenome do diretor, Jordan Peele, que é também o roteirista do filme. as palavras mais próximas – director, comedy, debut, proves, race – credenciam e contextualizam duas das primeiras informações relevantes para a “tabulação” desse gênero que estamos tentando classifica: Corra! é a estreia de Peele na direção – ele é amplamente conhecido na TV americana por estrelar uma série de comédia, Key & Peele, e se aproveita de sua veia cômica em Get Out colocando um coadjuvante (LilRel Howery) para adicionar a complexa tarefa de mesclar dois gêneros quase antagônicos num filme só – e é esse o segundo dos aspectos gerais mais interessantes da película, podendo ser observada na quantidade de sinônimos para comédia encontrados nesses clusters: satire, funny, comic, laughs.
Social, political, liberal, racist, racism, trump, obama: essas são algumas das palavras que cercam o terceiro e último ponto a ser considerado nessa análise – a crítica social que adiciona mais uma camada de complexidade ao filme – como já citado anteriormente, um dos principais pontos discutidos pelo roteiro é pautado pelo “dedo na ferida” colocado por Peele, sendo ele mesmo negro, e escolhendo Daniel Kaluuya (um negro que não poderia ser “embranquecido”) para protagonizar o desconforto de passar um fim de semana em um cenário quimérico de uma comunidade predominantemente branca tão gentil que “votaria no Obama mais uma vez, se pudesse” e que “considera como família” os poucos negros que ali vivem. Ou seja: o nível de refinamento da crítica política de Peele, que foge de atacar o previsível eleitorado racista de Donald Trump.
Ou seja: dessa análise extraímos alguns ingredientes da receita de sucesso
- Refinamento estético e utilização de componentes de roteiro que homenageiam e se inspiram em clássicos – sendo eles de terror ou não;
- Mescla de componentes característicos de outros gêneros (veia cômica)
- Uso do filme de terror como ferramenta de exploração de temas atuais e complexos, que normalmente seriam reservados para gêneros “mais sérios”
No próximo post, farei uma análise semelhante para A Corrente do Mal.